Como é que não havemos de querer expulsar a dor da nossa vida se ela nos dói? Portanto, é compreensível que haja um "ideal anti-depressivo" em todos nós. Uma espécie de "pensamento sem dor". E, até, que haja quem o venda e se aproveite dele. É claro que um ideal anti-depressivo está para o mundo mental como o populismo e a demagogia estão para a política: falar verdade por meias-verdades não nos torna mais felizes. Antes nos engana com "a verdade". Mas sempre nos dá a ilusão de que a felicidade é uma bem-aventurança onde se chega sem que haja, sequer, a necessidade de pensar.
É estranho que, sendo nós tão inacreditavelmente capazes de pensar, fujamos de o fazer; a vida toda. E só "acabemos" a pensar quando, finalmente, já não temos mais alternativas de evitar o pensamento. Aquilo que parece é que fugimos de pensar porque nós próprios, "à primeira vista", lidamos melhor com "meias-verdades" do que com a verdade. Talvez porque à verdade associemos uma parcela de dor. Reconhecermos que não estivemos tão bem como devíamos, num dado momento, dói um bocadinho. Assumirmos, a propósito de um objectivo, que entre aquilo que sonhámos e os resultados que atingimos há uma diferença grande, dói outro bocadinho. Ou que há pequenas cobardias que nos entaramelam, nos engasgam e nos calam, quando devíamos ter sido capazes de projectar a voz, dói mais um pouco, ainda. Logo, fugir das pequenas dores é humano. Por mais que, ao fugirmos delas, se criem meias-verdades. É verdade que faltar à verdade não é, "tecnicamente", mentir. Mas a questão que se coloca, a seguir, é se poderemos ser felizes com meias-verdades. E talvez seja aí que a nossa relação com a dor e com a verdade logo se compliquem.
É claro que, quando estamos felizes, perdura a ilusão de a dor ser uma "necessidade" que não serve para... nada. Compreende-se; a felicidade é uma vitória sobre a dor. Mas já não é verdade que uma pílula que "anestesie" a dor ("da alma") e torne as "vitórias" sobre ela mais rápidas e mais fáceis acabe com a tristeza e, só por isso, nos torne felizes. Anestesiar as pequenas dores, tentando chegar à felicidade sem pensar, não só não nos torna mais felizes como as transforma numa bola de neve de pequenas dores que nos coage, um dia atrás do outro, a não pensar. Logo, chegar à felicidade sintética com um anti-depressivo é uma forma de passar a vida a evitar a dor; acumulá-la mais e mais, de tanto a evitar; e, à conta disso, ficar mais deprimido do que quando se começou. Seria irónico se não fosse trágico; mas aquilo que se vende como “a arma” contra a dor mental arrisca-se a ser quem mais a acaba a "estimular". Um mundo de "felicidade sintética" pode parecer um mundo desempoeirado, expedito e sagaz. Mas, como todas as "espertezas saloias", sairá a ganhar se perceber que o contrário duma "psicologia positiva" não será uma psicologia negativa. Mas uma psicologia que traz verdade ao pó de arroz. Que nos mostra que sermos felizes e termos lágrimas não nos torna um subproduto, parado no tempo, da natureza humana.
Por outras palavras, se a dor magoa e, por vezes, quando se impõe demais em nós, nos impede de pensar, sermos felizes não é um lugar a que se chegue à margem da necessidade de pensar. Quem disse que a felicidade é coração está, portanto, enganado. A felicidade é um lugar onde se chega também com lágrimas. E só depois de muito se pensar.
Vem isto tudo a propósito da pandemia e da forma como ela se impôs nas nossas vidas, nos trouxe sofrimento, nos limitou as liberdades e nos impingiu distância e confinamento. Seria expectável que, no meio das dores que resultam das meias-verdades com que vivemos, todos os dias, tantos constrangimentos nos tivessem feito desmoronar de dor. E, no entanto - apesar dos mortos que se sucedem; apesar de vivermos numa certa "paranóia prudente" e em liberdade condicional; de trabalharmos no mesmo sítio onde dormirmos; dos nossos filhos terem tido na escola um lugar onde se cresce e que os expunha ao perigo; de muitos dos nossos "mais velhos" viverem numa "bolsa de resistência" que parece resistir a tudo e até à solidão; e de a economia parecer oscilar entre o colapso e a recuperação - quando somos obrigados a pensar ficamos mais fortes. Enfrentamos os perigos. Somos solidários. Reconhecemos as nossas fraquezas. Unimo-nos. E resolvemos. É claro que não sairemos da pandemia mais felizes. Mas sairemos mais capazes de pensar. Logo, mais fortes. Por isso, mais capazes de fugir às pequenas dores e às meias-verdades. E, por isso, sairemos mais competentes para sermos mais felizes.
Reconheço que falar do futuro pode pode parecer uma forma ousada de colocar pensamento positivo na catástrofe que estamos a viver. Mas não é! Será, antes uma forma de constatar que sempre que transformamos a dor em factores de crescimento, com a ajuda de quem nos encaminhe para pensar, ficamos mais fortes. E, se é assim, será estranho (e inadmissível...) que, quando isto passar, voltemos às meia-verdades com que fugimos às pequenas dores. E que, à custa do já clássico: "eu queria (ou: "eu gostava de") ser feliz", voltemos a deixar o nosso pensamento como um exercício que oscila entre o pretérito (imperfeito) e o condicional. E, à custa das dores que evitamos, voltemos a criar dores maiores. Voltemos a não pensar. Voltemos a um mundo anti-depressivo de felicidades sintéticas. E voltemos a ser infelizes. "Devagarinho".