Há por trás duma mulher grávida, qualquer coisa de mágico. E, seguramente, de divino. E, por isso mesmo, de omnipotente. É "um estado de graça". Uma experiência tão, inacreditavelmente, transcendente que custa imaginar que qualquer "tremor de terra" a possa comprometer. Ou, mesmo, interromper. E, no entanto, há um momento - regra geral, numa ecografia - em que a rotina da avaliação de um bebé sofre um sobressalto. E, depois de um silêncio, tenso e prolongado, um obstetra muda a expressão do seu olhar, e passa e repassa a sonda na barriga e, depois de algum tempo de hesitação, nos diz que o foco da ecografia "negativou". Que é uma forma de nos justificar, com vergonha e impotência, que não apanha o "ruído cardíaco" do bebé. O que, por outras palavras, quer dizer que ele... morreu. Dentro de alguém que, até entrar naquela consulta, tinha, de certo modo, "o rei na barriga". A seguir, uma pessoa veste-se, em choque. Onde se sentia iluminada sente, agora, um furor de imagens e de ideias que lhe vêm à cabeça e que concorrem umas com as outras, em cascata. Sai. Entra no consultório. Onde, antes, se preenchia mais uma página do boletim do bebé surge, agora, na melhor das hipóteses, a prescrição de comprimidos para o "expulsar". A seguir, uma pessoa tenta não se sentir despedaçada ou, mesmo, envergonhada. Sai. Pára no secretariado. Como de costume, alguém lhe pergunta se está "tudo bem". Não contém as lágrimas. Arrasta-se para o carro. Chora, finalmente. Grita. Geme. Não acredita que nada daquilo esteja a acontecer. E confronta-se com o absurdo de ter um útero a servir de urna quando, antes, ele era só o céu. Depois - tudo depende se aquele momento foi vivido a sós, se a história daquela gravidez não tinha tido momentos de dúvida ou, mesmo, de alguns presságios que se foram fantasiando, de forma furtiva - a dor solta-se. E aumenta. E aumenta. E aumenta. E o mundo das pessoas importantes desaba. E, quase de repente, perdem-se quase todas as pessoas indispensáveis. Tal é a forma como nos falham (por inibição, por falta de jeito ou por falta de comparência, simplesmente) na forma de perceber e de acudir a tanta dor. A seguir, depois do primeiro comprimido, vêm os arrepios. Um mal-estar que invade tudo e que rouba a lucidez. E a sensação, numa avalanche, que os sonhos - todos os sonhos (mesmo aqueles que estavam só em esboço ou em rabiscos) - se desmoronaram, para sempre. E que, a partir dali, passaram a ser uma miragem a que uma pessoa se agarra, na esperança de não nos fugirem, nunca mais. Depois, mais dores. Sempre as dores. Os mesmos arrepios. E a forma - ultrajante! - de expulsar o melhor dos nossos sonhos numa sanita. Como se fossem fezes. E tudo a repetir-se. Uma hora atrás da outra. E sempre a solidão, a atormentar-nos. E a perplexidade de não se perceber onde se falhou para se merecer tamanho mal, assim. E mais arrepios. E as ausências das pessoas indispensáveis na nossa vida a picarem o ponto. E o choque de se imaginar que se acabou de expulsar o bebé e de o deitar fora. Abrir o autoclismo. E tudo doer mais; sem um fim à vista. E não ser claro se as dores são dores ou a solidão a estilhaçar-nos, por dentro, cavando um abismo onde, antes, parecia só existir o céu. A seguir, há sempre alguém que nos lembra que temos que comer. E descansar. E vem lá mais outra conotação. E o pesadelo torna-se uma catástrofe que se repete uma vez. E mais outra. E o autoclismo; sempre. E a dor que ninguém entende. E que, por isso, todos parecem querer só amainar. A seguir, depois de dias de dores de barriga e dores da alma a concorrerem umas com as outras, mais uma ecografia. No mesmo sítio onde, antes, o estado era de graça. E várias mulheres, barrigudas e orgulhosas. E uma pessoa a fazer um esforço só para não se desmoronar. E a solidão, sempre a solidão a doer. Sempre a doer. A seguir, o sorriso do obstetra esmoreceu. A mesma ecografia. A mesma sonda. Um "está tudo bem" que, agora, quer dizer que não há nem rasto do bebé. E uma dor que sufoca. E um alívio por não se acabar numa cama de maternidade, ao lado de outras mães. As outras, que vivem as contrações porque vem lá um bebé. E nós esperando que venha uma espécie de cadáver. Depois, fica a dor, sem anestesia, de não vermos resguardados os nossos desejos. Um rasgão na alma, que nunca se conserta. E uma bruma, atormentada, que nos faz duvidar de voltarmos a ser, sequer, capazes de sonhar. E as pessoas. Sempre as pessoas. Esquivas na forma como nos consolam. E a solidão. Sempre a solidão. E a revolta e o ódio de ninguém perceber como dói um sonho. Quando morre.
breve nota - este texto não pretende, em momento algum, ser uma forma de desconsiderar todas as mulheres que, fazendo uso da sua liberdade, interrompem, de forma voluntária, a gravidez. Procura colocar o foco em outras mulheres que, contra a sua vontade, são abalroadas por uma interrupção da gravidez. E que, apesar dos cuidados que tiveram, vivem esse momento como uma sucessão de descuidos que as empurra para experiências de desamparo que nunca aparecem nos jornais.